por nils
Desde dezembro, a Argentina tem um novo presidente, o neoliberal Mauricio Macri. Pouco antes da eleição o ex-prefeito de Buenos Aires prometeu continuar os programas sociais do governo anterior, no entanto, de um jeito mais democrático e com menos culto à personalidade. Mas agora Macri usa as férias parlamentares de verão para governar sozinho com decretos presidenciais. O novo presidente conservador ataca, sobretudo, o setor de mídia e telecomunicações, critica o jornalista argentino Francisco Godinez Galay. Ele trabalha para a ONG Centro de Políticas Públicas para o Socialismo e é responsável, dentre outras coisas, pelo acompanhamento da política de mídia estatal. Falamos com ele da formação de possíveis novos monopólios até as ameaças da liberdade de expressão.
Na Argentina durante o recesso parlamentar governa-se exclusivamente por Decretos Presidenciais. O novo presidente Mauricio Macri disse que ele atua dentro das normas democráticas, o ex-governo fala de um golpe de Estado neoliberal. Quem está certo?
Ambas as descrições são precisas. Macri usa, sobretudo, os chamados decretos de emergência. Claro, que são instrumentos constitucionais, mas olhando para o conteúdo dos até agora quase 40 decretos, não há nenhuma urgência especial reconhecível. Ele abusa claramente e governa com mão autoritária em domínios políticos sensíveis. No campo da legislação da mídia, o poder judicial já tentou proibir as alterações, mas ele eliminou essa objeção com outro Decreto…
Este estilo de governança não é totalmente novo. Sua antecessora, Cristina Fernández de Kirchner, aproveitou também os decretos de urgência, por exemplo, para aprovar o orçamento das celebrações nacionais bicentenários contra a vontade da oposição.
Sim, Kirchner ainda detém o recorde de todos os tempos em termos de governar por decreto. Mas a coisa chocante do Macri é o que ele organizou em tão pouco tempo e qual é o alcance das suas decisões. Ele aboliu instituições do Estado, estabeleceu um novo ministério e nomeou juízes. Isso é um choque.
Acima de tudo, foi o ataque à regulação da mídia que causou as maiores protestos. Por quê?
O novo governo dedicou a maior parte dos decretos a este tema. Duas agências reguladoras independentes foram fechadas e se criou um Ministério das Comunicações, que é ligado diretamente ao governo. A partir de agora um único órgão controlará todos os meios de comunicação e a telecomunicação. As novas regras são significativas. Licenças de rádio e TV podem ser comercializadas como mercadorias, que não era possível anteriormente. Agora também é permitido que uma empresa de mídia possa controlar até 15 canais de televisão. Quem é beneficiário dessas mudanças senão os grandes conglomerados, como o grupo Clarín?
A abordagem parece muito metódico. Existe evidência de que as empresas de mídia participaram nesta reorganização legal?
Evidências claras não existem. Mas as simpatias entre um governo com perfil de negócios e os grandes grupos econômicos do país são óbvias. Muitos representantes do governo são membros de conselhos de grupos econômicos, por exemplo da empresa de telefonia móvel Telefónica ou o próprio Clarín. Não surpreende então que os jornais controlados por este último ator sejam muito partidários. Eles comentam sobre os acontecimentos recentes como uma “normalização dos meios de comunicação”, falam do “fim da guerra contra o jornalismo”.
Quais são os argumentos que o Governo reivindica para exaltar esta reorganização do setor da mídia em comunicação com a população?
O Governo faz política apresentando as suas ações como livre de ideologia, embora eles introduzam muito consistentemente uma lógica de mercado em todos os espaços públicos. O presidente e seus ministros negam serem políticos. Por isso seus argumentos consistem em afirmações como: “Nós precisamos uma Internet mais rápida”, “os telefones celulares devem custar menos”. Estes são os seus cavalos de Tróia para conquistar a população, que, então, prontamente diz: “É verdade, a internet é uma merda e os telefones móveis são pura sucata”.
Com argumentos semelhantes o novo governo ataca também as estações de televisão pública que são difamadas como porta-vozes do Kirchnerismo. Houve demissões, um programa satírico foi retirado da grade, tem ameaças de cortes financeiros. De que maneira este conflito coloca em xeque a liberdade de expressão?
Distinguir entre a televisão estatal e organismos públicos de radiodifusão não são coisas fáceis em nenhum país da América Latina. Eu acho que é uma mistura de falta de compreensão e da constante tentação de usar os canais para fins de governo. Embora os índices de audiência em geral sejam bastante baixos, as emissões públicas certamente tem um grande significado porque ao contrário de muitas emissoras comerciais podem ser recebidas também no interior. Também, a estação de rádio pública Rádio Nacional, muito mais popular que a TV pública, garante um bom acesso à informação. Antes da sua eleição Macri prometeu limitar a influência da política sobre estas estações e outras instituições importantes, como o parque da ciência Tecnopolis ou o Centro Cultural Kirchner. No entanto, neste momento dedica-se, sobretudo, em demitir nestas instituições supostamente Kirchneristas, sem fazer mudanças estruturais para melhorar a independência editorial.
O Centro Cultural Kircher em Buenos Aires parece ser um projeto muito interessante, de fato. Mas a escolha do nome também facilita ao novo governo justificar demissões e cortes no orçamento.
Sim, claro que era uma bola da vez. Por outro lado, a administração anterior sempre transformou esta personalização e polarização da vida pública em capital político. O Grupo Clarín foi criado como um vilão genérico, os Macristas e o agronegócio funcionaram como antagonistas complementares. Mas esta confrontação permanente foi um erro do Kirchnerismo e Macri agora responde na mesma moeda.
E o que acontece com a participação da Argentina na Telesur? Este canal de televisão, financiado por sete países do Sul da América de Sul é conhecido como a plataforma midiática dos socialistas do século 21. Tem muitos espectadores dentro da Argentina? O governo Macri vai puxar a ficha?
A importância da Telesur na Argentina não é muito grande. O alcance é limitado porque o Clarín controla a maior parte da rede de TV a cabo e não passa o programa da Telesur na sua rede. Então, a Telesur é recebido apenas com outras operadoras de cabo menores e na TV digital terrestre. No entanto, o apoio da Telesur com dinheiro público da Argentina sempre foi controverso. Porque no programa há pouco espaço para a realidade argentina. Além do que Diego Maradona moderou um programa para a Copa do Mundo de 2014, a maioria do conteúdo é produzido na Venezuela. E com certeza, o alinhamento chavista da transmissora agora coloca nas mãos de Macri os argumentos para vetar a utilização dos fundos públicos.
Todo o conflito político dos últimos anos sempre se conta como um confronto entre o governo Kirchner e o grupo de mídia Clarín. Há certamente também outros atores influentes na mídia e na comunicação, por exemplo, a empresa de telefonia móvel, a Telefónica, que você já mencionou.
Claro, o tema não é apenas a televisão, também na Argentina acontece uma convergência midiática. Como tal, uma combinação de diferentes sistemas de comunicação não é nada ruim. O problemático é quem quer ficar junto com quem. Nós não estamos experimentando na Argentina o surgimento de novas empresas, ao contrário, Clarín e Cia. estimulam novos mercados através de ofertas de serviços cross-mídia. Clarín tem sido sempre a empresa de mídia mais forte do país e a Telefónica a líder no setor móvel e eles estão sempre interessados em vincular suas ofertas e criar pacotes de serviços. Mas a Lei de Mídia válida até agora tornou impossível impedir monopólios intersetoriais.
Sim, a lei da mídia proíbe isto. Mas a lei da comunicação digital, igualmente criado pelo governo anterior, permitia este tipo de fusões intersetoriais…
Sim, isso sempre foi inconsistente e lá você também pode ver que influência o lobby das empresas de telecomunicações tem na Argentina já por algum tempo. Eles se fortaleceram muito durante o governo de Cristina Kircher porque ela queria criar desse jeito um contrapeso para o Grupo Clarín. Mas Clarín rebateu, comprou a empresa Nextel e se converteu de um golpe no quarto maior ator no mercado de telecomunicações. Como a lei de mídia proibia isto explicitamente, começou uma disputa legal longa, que durou até o final do governo Kirchner. Mas como a nova agência de governo já levantou as barreiras ao investimento e fusões intersetoriais, as grandes empresas já não tem que se preocupar com estes detalhes. A filha argentina de Telefónica não precisa mais fingir que o seu canal de televisão Telefe pertence a empresa-mãe espanhola. E o Clarín no futuro pode abertamente agir como dono do provedor de Internet FiberTel que de qualquer maneira já faz parte do seu império depois da fusão com a Cablevisión, controlado pelo grupo Clarín. Às empresas não lhes faltam capital para conquistar novas fatias do mercado. Na Argentina não existem muitas empresas de telecomunicação sem fins lucrativos. E o futuro para estas será ainda mais difícil.
Que alianças estão lá? Na elaboração da Lei de Mídia adotada em 2009 foram envolvidas mais de 230 organizações públicas, privadas e sociais. O que resta dessa plataforma diversificada depois dos anos de polarização politica?
Os chamados governos progressistas dos Kirchners compreenderam bem como assimilar as demandas dos movimentos sociais e organizações de direitos humanos e dividi-los ao mesmo tempo. A Aliança ampla para a democratização da comunicação teve inicialmente muito legitimidade, mas a maioria das organizações no decorrer do tempo se modificaram conforme o governo, o consenso inicial na sociedade civil se desintegrou. Somente no final do reinado dos Kirchner, certa reaproximação ocorreu. As quatro principais redes de mídia alternativa e comunitária, entre elas a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC) da Argentina, que haviam caminhado por trilhos separados por muito tempo, finalmente voltaram a se juntar em torno de uma pauta comum para um maior reconhecimento legal das estações de rádio e de televisão comunitária.
Quais efeitos negativos você teme para as rádios comunitárias caso os decretos presidenciais em matéria de regulamentação da mídia persistam?
Ainda é difícil avaliar a extensão das ações governamentais e até que ponto as modificações destinam-se a ser perseguidas. Terá impacto negativo de qualquer modo, já que todos os parágrafos que restringem a concentração da mídia serão abolidos. Tanto mais licenças de rádio e TV estejam acumulando as empresas, menos espaço haverá para vozes independentes. Além disso, eu não acho que o novo governo está particularmente interessado em ampliar os espaços para mídia alternativa ou comunitária. Se o governo anterior não ajudou muito, particularmente, para colocar em pratica o que prevê a lei, então agora eu vejo ainda mais problemas. Acho que no futuro a obtenção de frequências será mais difícil, as condições de trabalho se complicarão. Talvez a gente volte até aos momentos em que os equipamentos de transmissão foram confiscados. De todo modo, estamos esperando muitas turbulências e poucas garantias para o nosso trabalho.
Até agora o governo justifica seus ataques com o argumento de que a vigente regulação da mídia reduziu a qualidade dos serviços de comunicação, impediu a concorrência, o investimento e a digitalização. Não somente os movimentos sociais na Argentina, mas também os observadores internacionais aparentemente discordam…
Sim, as intervenções do Relator Especial para a Liberdade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por exemplo, foram muito importantes. Este apoio será a chave para resolver o conflito atual. Até agora Macri não se incomodou muito com a critica das organizações sociais. Mas se a CIDH identificar nos seus relatórios, as modificações da Lei de mídia como um abuso legal, com certeza sentirá.
Agora, quando as leis existentes são desrespeitadas e modificadas de forma autoritária, articula-se certa autocritica por parte dos movimentos sociais que nos últimos anos se focaram, sobretudo, na luta legal? Um pouco de desobediência civil talvez tivesse criado fatos mais duradouros frente à onda de decretos…
Há autocrítica, sim, mas não em público. Muitos movimentos sociais e iniciativas políticas estão desiludidos e dizem, “depois de todos esses anos, parece que vamos ficar com as mãos vazias de novo”. Algumas iniciativas de mídia, como AMARC ou a Rede Nacional de Meios de Comunicação Alternativos (RNMA) sentem confirmadas suas críticas contínuas da execução insuficiente da lei de mídia nos últimos anos. Também a minha organização tem continuamente criticado deficiências na democratização dos meios de comunicação desde 2009. Por outro lado, também é claro que devemos defender o progresso que alcançamos mesmo que muitas ideias permaneceram presas no meio do caminho.
Macri ainda tem algumas semanas até que voltem os tribunais no final de janeiro e o Parlamento no início de março para reiniciar o trabalho. Vai chover mais decretos ainda?
O perigo existe, mas acho que muitos dos decretos não vão encontrar uma maioria no Congresso. Especialmente com os decretos de emergência, a lei exige que eles sejam posteriormente confirmados pelo Parlamento. Mas, mesmo para isso, o governo certamente vai ter preparado uma estratégia. Vai ser difícil desfazer tudo o que acontece agora fora do controle parlamentar. As empresas de mídia continuarão a criar fatos, comprar novas licenças, também de forma intersetorial. 2016 ameaça ser uma grande briga judicial o que criará tempo para continuar a governar e fazer negócios…
Quando Macri ainda era prefeito de Buenos Aires, ele parecia muito receptivo a pesquisas de opinião pública. Será possível mobilizar uma massa crítica que incomode e capaz de manter ao mesmo tempo uma distância critica ao Kirchnerismo?
Estou otimista de que as organizações e redes sociais irão fazer um monte de barulho. Talvez Macri ignore isso num inicio do mesmo jeito como ignorou as vozes do Judiciário até agora. Mas um amplo movimento de oposição seria problemático para ele no longo prazo. Já havia algumas demonstrações nos últimos dias. Eu acho que sim, as lutais sociais na Argentina se intensificarão. E devemos comprar essa briga para finalmente colocar limites ao atual curso do governo.
Entrevista: Nils Brock